Houve um tempo em que a seca
era um “monstro” temido pelo povo do sertão Semiárido. Nesse tempo não se ouvia
falar em convivência. Foram diversas as ações governamentais voltadas para o
que se chamou de “combate à seca”, através das quais foi criada a indústria da
seca. Obras de açudagem, frentes de serviços, distribuição de alimentos e
muitas outras ações assistencialistas.
Foi a indústria da seca que
transformou o fenômeno natural recorrente na região semiárida brasileira em
“monstro”. Nesse contexto vieram os modelos de obtenção de vantagens políticas,
fazendo uso de programas assistencialistas, bem como a justificativa para a
construção de grandes obras de açudagem e irrigação na região.
Sendo a seca um fenômeno
natural cíclico, um longo período de estiagem ocorreu na região no início da
década de 30 do século passado, ficando conhecida como a seca de 1932. Nesse
ano, milhares de sertanejos e sertanejas cearenses foram aprisionados (as) nos
campos de concentração em pontos estratégicos do Ceará, com o objetivo de
impedir a invasão da capital Fortaleza pelos flagelados da seca, como ocorrera
em anos anteriores.
Um dos campos de
concentração funcionou no município de Senador Pompeu, no canteiro obras da
paragem do Patu, obras que tiveram início em 1919 e foram paralisadas em 1924. Mais
de 16 mil pessoas foram confinadas em uma área de pouco mais de 3 km quadrados.
Milhares morreram, vítimas de doenças, maus tratos, higiene precária e fome.
Tudo planejado e patrocinado pelos governos da época.
Com o fim da grande seca, no
ano de 1933, os sertanejos voltaram para suas casas, seus lugares de origem.
Mas cada sobrevivente levou consigo as memórias do campo de dor e sofrimento.
Ficou principalmente no imaginário popular, através dos relatos dos sobreviventes,
a história de uma gente que teve seus direitos violados, colocados em situação
de total desfiguração do ser humano.
Foi através da memória dos
sobreviventes e das edificações construídas inicialmente para abrigar os
engenheiros e operários para construção da barragem do Patu, que o fato
histórico não foi esquecido, principalmente a religiosidade popular, em que há
a existência do sentimento de que o sofrimento purifica e eleva a alma ao plano
da salvação. Criou-se no imaginário popular da região que as almas da barragem
são milagrosas.
As Santas Almas da Barragem,
que obram milagres, que intercedem pelo povo que sofre, que ensinam o caminho
da fé e da esperança, para que tal fato nunca mais venha acontecer nos sertões
nordestinos. O martírio coletivo criou um santo coletivo. AS ALMAS DO POVO, O
SANTO DO POVO.
No ano de 1982, o padre
Italiano Albino Donatti, recém-chegado a Senador Pompeu, chamou os paroquianos
para fazerem uma caminhada saindo cedo da manhã da Igreja Matriz até o
Cemitério da Barragem para homenagear os que morreram no campo de concentração
e refletir sobre a história.
A caminhada virou tradição.
Todo segundo domingo de novembro milhares de pessoas caminham em procissão até
o cemitério onde é celebrada uma missa em homenagem aos que sofreram no campo
de concentração de 1932. O Cemitério da Barragem é considerado um campo santo
para a comunidade e alimenta a fé e esperança em melhores condições de vida,
principalmente no que diz respeito ao acesso à água para beber e produzir.
A caminhada da Seca é um
importante patrimônio cultural de Senador Pompeu e carrega uma forte
simbologia: chamar a atenção dos governantes, assim como da própria população,
para refletir e buscar alternativas para se viver bem no Semiárido.
É importante também no
sentido de manter viva a memória histórica, para não esquecermos o sofrimento
de tantas pessoas. Para que possamos garantir que nunca mais um fato
semelhante venha a acontecer.
É importante também pela fé,
pela devoção que a comunidade tem para com as almas da barragem. Tem um ditado
que diz: “santo de casa não obra milagre”. No caso de Senador Pompeu, as santas
almas da barragem obram milagre sim. É um caso peculiar em que o santo é
coletivo. O povo virou santo, o santo milagreiro. São as almas do povo que
intercedem pelo povo que clama por justiça, por vida digna no Semiárido.
Representa a luta por
direitos fundamentais, pela justiça social, o acesso à terra para morar e
produzir, denuncia o modelo de desenvolvimento imposto pelos governos e o agronegócio
que prioriza o lucro em detrimento da vida.
A tradicional
caminhada em memória das vítimas do campo de concentração de 1932 acontecerá
este ano no dia 13 de novembro.
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